CARTA CONCLUSIVA SOBRE O PAPEL DO INVENTÁRIO NA PROTEÇÃO JURÍDICA DO PATRIMÔNIO CULTURAL

Ouro Preto, 7 de novembro de 2025

Elaborada no âmbito do II Seminário Nacional de Direito do Patrimônio Cultural, uma iniciativa da Associação dos Observadores de Direitos Difusos e Coletivos de Minas Gerais e conta com o apoio do Ministério Público de Minas Gerais e do Núcleo de Pesquisa em Direito do Patrimônio Cultural da UFOP .

Aos órgãos públicos federais, estaduais e municipais, instituições de ensino e pesquisa, e à sociedade civil comprometida com a salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro.

Preâmbulo

1. Considerando que os inventários são instrumentos essenciais para a proteção, salvaguarda e valorização do Patrimônio Cultural brasileiro, pois visam identificar, contextualizar, caracterizar e documentar as diversas manifestações culturais e bens de interesse para a preservação, sejam eles de natureza material ou imaterial;

2. Considerando que, por meio desse instrumento, previsto no art. 216, § 1º, da Constituição Federal de 1988, as comunidades envolvidas exercem papel fundamental nos processos de produção de conhecimento e reconhecimento das referências culturais;

3. Considerando que o Poder Público e as instituições da sociedade civil também são atores estratégicos nesse processo e, ao atuarem ao lado das comunidades, constituem uma importante rede colaborativa que potencializa as ações de inventariação, permitindo que alcancem diferentes regiões e grupos sociais;

14. Considerando que, para a realização do trabalho de inventariação, é importante fomentar a mobilização e promover conexões com os detentores e proprietários, por meio de atividades formativas que sejam dialógicas, inclusivas e plurais, fortalecendo os vínculos entre memória, identidade e participação;

5. Considerando, por fim, a importância dos inventários na proteção e salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro, esta Carta propõe a observância das cinco diretrizes que seguem.

Estas diretrizes compreendem as consequências jurídicas decorrentes da inventariação de um bem como patrimônio cultural brasileiro, conforme exposto a seguir:

I - Dos Efeitos Jurídicos Imediatos da Inventariação

6. Reconhece-se a aplicação, pelo diálogo das fontes, do disposto no art. 38, § 2º da Lei nº 11.904/2009: “Os bens inventariados ou registrados gozam de proteção com vistas a evitar o seu perecimento ou degradação, a promover sua preservação e segurança e a divulgar a respectiva existência”.

7. Dessa forma, afirma-se que o ato administrativo já gera efeitos jurídicos protetivos imediatos, submetendo-se ao princípio da administração vinculada, o que impede omissão quanto à proteção do bem após a inventariação.

8. Na ausência de uma norma geral sobre o procedimento administrativo de inventário, cabe aos Estados, DF e Municípios exercerem sua competência legislativa suplementar, regulamentando esse instrumento protetivo em seus territórios, garantindo um devido processo administrativo e a colaboração das comunidades envolvidas, tendo como premissa que, uma vez inventariado, o bem deve ter sua existência preservada/garantida.

9. Eventual nulidade do processo administrativo de inventário não prejudica o reconhecimento da relevância cultural do bem.

2II - Dos Deveres de Conservação e Função Sociocultural da Propriedade

10. Reconhece-se que os bens materiais inventariados devem ser conservados adequadamente por seus proprietários, e sua preservação deve ser respeitada por todos os cidadãos, uma vez que se submetem ao regime jurídico específico dos bens culturais protegidos.

11. Afirma-se que o uso desses bens deve observar sua integridade e seus valores culturais. A proteção decorrente da inventariação um bem cultural material tem natureza de obrigação “propter rem”, vinculando terceiros, inclusive adquirentes, por força do princípio da função sociocultural da propriedade previsto na Constituição Federal e da eficácia erga omnes do ato de proteção.

12. Cabe ao proprietário de bem inventariado que não dispuser de recursos para proceder às obras de conservação e reparação levar ao conhecimento do órgão responsável pelo inventário. Reconhece-se, porém, que o inventário é instrumento de identificação e gestão, distinto do tombamento, não definindo os mesmos parâmetros de intervenção. O dever estatal, de caráter orientador e preventivo, se concretiza por meio da difusão de conhecimento técnico e da articulação institucional, garantindo que os valores reconhecidos orientem políticas públicas e planejamento territorial.

13. A proteção e promoção dos bens imateriais inventariados deve ocorrer por meio de políticas de salvaguarda, de incentivo à transmissão intergeracional, de participação dos envolvidos e consulta às comunidades detentoras, respeitados os seus protocolos, em conformidade com a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho e com o direito constitucional à livre expressão cultural.

III - Do Controle Administrativo e Vigilância Prévia

14. Reconhece-se que os bens materiais inventariados não poderão ser destruídos, inutilizados, deteriorados ou alterados sem prévia autorização fundamentada do órgão 3responsável pelo ato protetivo, que deve exercer especial vigilância e garantir a preservação contínua.

15. Afirma-se, outrossim, que a presença de bem material inventariado exige manifestação técnica prévia dos órgãos de patrimônio cultural em processos de licenciamento ambiental ou patrimonial, aprovação de projetos urbanísticos ou concessão de alvarás, respeitada a autonomia regional e local em face da ausência de lei federal.

IV - Da Responsabilidade Civil, Administrativa e Penal

16. Reconhece-se que a alteração, a descaracterização, a inutilização, a deterioração, a destruição dos bens inventariados, entre outras ações não autorizadas, poderão ensejar responsabilidades administrativa, civil e criminal.

17. Afirma-se, ademais, que os bens inventariados qualificam-se como objeto dos crimes previstos nos arts. 62 e 63 da Lei nº 9.605/1998. A autorização indevida que venha a possibilitar danos a tais bens pode ensejar responsabilidade civil, inclusive objetiva, bem como sanções administrativas, com base no art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/1981, e na própria Lei nº 9.605/1998.

V- Da Publicidade, Educação Patrimonial e Envolvimento Comunitário

18. Reconhece-se que as eventuais restrições resultantes do inventário são compatíveis com o princípio da função sociocultural da propriedade, previsto na Constituição Federal e no Código Civil (art. 1.228, § 1º), bem como com o princípio da participação social.

19. Tais restrições se coadunam com o dever dos proprietários de bens culturais inventariados de conservá-los e zelar por sua integridade.

20. Afirma-se, ainda, que, em atenção aos deveres de publicidade e de informação, além dos princípios relacionados à educação patrimonial e à acessibilidade, os órgãos responsáveis devem divulgar a inventariação de forma pública e transparente, inclusive com sinalização visível, quando pertinente, a fim de que as comunidades possam reconhecer e valorizar os bens culturais inventariados.

Compromisso Final

21. Esta Carta é fruto de um processo coletivo e colaborativo, construído ao longo das etapas de mobilização e diálogo promovidas no âmbito do II Seminário Nacional de Direito do Patrimônio Cultural.

22. Aprovada em Reunião Plenária no dia 7 de novembro de 2025, este documento expressa o entendimento coletivo sobre o papel do inventário na proteção jurídica do patrimônio cultural brasileiro e o compromisso de busca constante pelo aperfeiçoamento da legislação sobre a matéria.

Ouro Preto, 7 de novembro de 2025.

Participantes do II Seminário Nacional de Direito do Patrimônio Cultural